Ricardo Maurício Freire Soares - CULTURA JURÍDICA PÓS-MODERNA

ELEMENTOS PARA UMA CULTURA JURÍDICA PÓS-MODERNA






Ricardo Maurício Freire Soares

Doutorando em Direito Público (UFBA). Mestre em Direito Privado e Econômico (UFBA). Professor da Faculdade de Direito da UFBA, da Faculdade Baiana de Direito e do Curso Juspodivm. Professor-visitante da Università degli Studi di Roma. Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-Ba. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros. E-mail: ric.mauricio@ig.com.br

 





Que obra-prima, o homem! Como é nobre a sua razão! Como são infinitas as suas faculdades! Como são expressivas e admiráveis a sua forma e o seu movimento! Como pelos seus atos se parece com um anjo! Como pela inteligência se parece com um deus! É a beleza do mundo! O tipo supremo dos seres criados!
Shakespeare


Quase nada há de justo ou injusto que não mude de natureza com a mudança de clima. Três graus de altura popular revolucionam toda a jurisprudência. Um meridiano decide sobre a verdade. Após alguns anos de posse, alteram-se leis fundamentais. O Direito tem as suas épocas. Divertida justiça esta que um rio ou uma montanha baliza. Verdade aquém, erro além Pirineus.
Pascal


1. Fundamentos do projeto da modernidade


Desde a época do renascimento, a humanidade já havia sido guindada ao patamar de centro do universo. Típica da nova perspectiva era a visão de Francis Bacon, segundo a qual os homens poderiam desvendar os segredos da realidade, para, então, dominar a natureza. Posteriormente, René Descartes lançou as bases filosóficas do edifício moderno, definindo a essência humana como uma substância pensante (cogito, ergo sum) e o ser humano como um sujeito racional autônomo. Na mesma senda, Isaac Newton conferiu à modernidade o seu arcabouço científico ao descrever o mundo físico como uma máquina, cujas leis imutáveis de funcionamento poderiam ser apreendidas pela mente humana. Na seara político-social, despontou o pensamento de John Locke, vislumbrando a relação contratual entre governantes e governados, em detrimento do absolutismo, e a supremacia dos direitos naturais perante os governos tirânicos.

Abeberando-se neste rico manancial de idéias, coube ao o movimento iluminista, no século XVIII, consolidar o multifacético projeto da modernidade, Diderot, Voltaire, Rousseau e Montesquieu inaugurariam, de modo triunfal, a idade da razão. Sob a influência do iluminismo, Emanuel Kant complementaria o ideário moderno, ao enfatizar o papel ativo da mente no processo de conhecimento. Para Kant, o intelecto sistematizaria os dados brutos oferecidos pelos órgãos sensoriais através de categorias inatas, como a noções de espaço e tempo. Nessa perspectiva, o “eu pensante”, ao desencadear suas potencialidades cognitivas, afigurava-se como o criador do próprio mundo a ser conhecido. A pretensão transcendental de Kant supunha, assim, que a cultura e a ética refletiriam padrões universalmente racionais e humanos, submetendo-se os deveres ao princípio supremo da razão prática – o imperativo categórico. Ao conferir posição privilegiada ao sujeito do conhecimento, Kant elevou o respeito a pessoa humana como um valor ético absoluto. O sujeito de kantiano tornava-se capaz de sair da menoridade e ser protagonista da história.

O programa moderno estava embasado no desenvolvimento implacável das ciências objetivas, das bases universalistas da ética e de uma arte autônoma. Seriam, então, libertadas as forças cognitivas acumuladas, tendo em vista a organização racional das condições de vida em sociedade. Os proponentes da modernidade cultivavam ainda a expectativa de que as artes e as ciências não somente aperfeiçoariam o controle das forças da natureza, como também a compreensão do ser e do mundo, o progresso moral, a justiça nas instituições sociais e até mesmo a felicidade humana.

Não é outro o entendimento de Alain Touraine (1994, p. 9):

A idéia de modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a afirmação de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma correspondência cada vez mais estreita entre a produção, tornada mais eficaz pela ciência, a tecnologia ou a administração, a organização da sociedade, regulada pela lei e a vida pessoal, animada pelo interesse, mas também pela vontade de se liberar de todas as opressões. Sobre o que repousa essa correspondência de uma cultura científica, de uma sociedade ordenada e de indivíduos livres, senão sobre o triunfo da razão? Somente ela estabelece uma correspondência entre a ação humana e a ordem do mundo, o que já buscavam pensadores religiosos, mas que foram paralisados pelo finalismo próprio às religiões monoteístas baseadas numa revelação. É a razão que anima a ciência e suas aplicações; é ela também que comanda a adaptação da vida social às necessidades individuais ou coletivas; é ela, finalmente, que substitui a arbitrariedade e a violência pelo Estado de direito e pelo mercado. A humanidade, agindo segundo suas leis, avança simultaneamente em direção à abundância, à liberdade e à felicidade.

Nas suas conotações mais positivas, o conceito de modernidade indica uma formação social que multiplicava sua capacidade produtiva, pelo aproveitamento mais eficaz dos recursos humanos e materiais, graças ao desenvolvimento técnico e científico, de modo que as necessidades sociais pudessem ser respondidas, com o uso mais rigoroso e sistemático da razão.

A modernidade caracterizava-se pela forma participativa das tomadas de decisões na vida social, valorizando o método democrático e as liberdades individuais. O objetivo da sociedade moderna era oferecer uma vida digna, na qual cada um possa realizar sua personalidade, abandonando as constrições de autoridades externas e ingressando na plenitude expressiva da própria subjetividade.

A realização dos objetivos do projeto da modernidade seria garantido, no plano histórico, pelo equilíbrio entre os vetores societários de regulação e emancipação. As forças regulatórias englobariam as instâncias de controle e heteronomia. De outro lado, as forças emancipatórias expressariam as alternativas de expansão da personalidade humana, oportunizando rupturas, descontinuidades e transformações.

Neste sentido, discorre Boaventura Santos (1995, p.77)

O projecto sócio-cultural da modernidade é um projecto muito rico, capaz de infinitas possibilidades e, como tal, muito complexo e sujeito a desenvolvimentos contraditórios. Assenta em dois pilares fundamentais, o pilar da regulação e o pilar da emancipação. São pilares, eles próprios, complexos, cada um constituído por três princípios. O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado, cuja articulação se deve principalmente a Hobbes; pelo princípio do mercado, dominante sobretudo na obra de Locke; pelo princípio da comunidade, cuja formulação domina toda a filosofia política de Rousseau. Por sua vez, o pilar da emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica.

O programa da modernidade fundar-se-ia na estabilidade dos referidos pilares, assegurada pela correlação existente entre os princípios regulatórios e as lógicas emancipatórias. Sendo assim, a racionalidade ético-prática, que rege o direito, seria relacionada ao princípio do Estado, uma vez que o Estado moderno era concebido como o detentor do monopólio de produção e aplicação das normas jurídicas. A racionalidade cognitivo-instrumental, por seu turno, seria alinhada ao princípio do mercado, porquanto a ciência e a técnica afiguravam-se como as molas mestras da expansão do sistema capitalista.

Com efeito, no plano gnoseológico, o projeto da modernidade trouxe a suposição de que o conhecimento seria preciso, objetivo e bom. Preciso, pois, sob o escrutínio da razão tornava-se possível compreender a ordem imanente do universo; objetivo, porquanto o modernista se colocava como observador imparcial do mundo, situado fora do fluxo da história; bom, pois o otimismo moderno conduzia à crença de que o progresso seria inevitável e de que a ciência capacitaria o ser humano a libertar-se de sua vulnerabilidade à natureza e a todo condicionamento social.

O cerne do programa moderno era, indubitavelmente, a confiança na capacidade racional do ser humano. Os modernos atribuiam à razão papel central no processo cognitivo. A razão moderna compreende mais do que simplesmente uma faculdade humana. O conceito moderno de razão remetia à assertiva de que uma ordem e uma estrutura fundamentais são inerentes ao conjunto da realidade. O programa moderno se alicerçava na premissa de que a correspondência entre a tessitura da realidade e a estrutura da mente habilitaria esta última a discernir a ordem imanente do mundo exterior.

A idéia de uma modernidade denotava, assim, o triunfo de uma razão redentora, que se projetaria nos diversos setores da atividade humana. Esta razão deflagraria a secularização do conhecimento, conforme os arquétipos da física, geometria e matemática. Viabilizaria a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, concebida como a única forma válida de saber. Potencializaria, através do desenvolvimento científico, o controle das forças adversas da natureza, retirando o ser humano do reino das necessidades. Permitiria ao homem construir o seu destino, livre do jugo da tradição, da tirania, da autoridade e da sanção religiosa.

Neste compasso, ensina João Petrini (2003, p.27):

O projeto da modernidade nasceu para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei universais e a arte, com total autonomia de qualquer instância superior, construindo-se nos termos da vida própria lógica interna destas. O desenvolvimento das ciências deveria permitir o domínio da natureza , respondendo progressivamente às necessidades dos homens e ampliando, portanto, a esfera da liberdade. A racionalidade desenvolvida nas ciências exatas e nas ciências naturais seria aplicada também à elaboração de formas racionais de organização da sociedade, proporcionando a emancipação, a libertação da escassez e das calamidades naturais. Esse processo de domínio, por parte da razão cartesiana, de todas as esferas da realidade humana e social, era considerado irreversível e levaria à libertação da irracionalidade dos mitos, das superstições, das religiões.


2. Os elementos da modernidade jurídica


O programa moderno abria margem para a emergência do paradigma liberal-burguês na esfera jurídica. O conceito de Estado de Direito é, ainda hoje, a pedra angular para o entendimento da modernidade jurídica. Surgido na dinâmica das revoluções burguesas (Revolução gloriosa, Independência norte-americana, Revolução francesa), o Estado de Direito sintetiza um duplo e convergente processo de estatização do Direito e jurisdicização do Estado. Esta nova forma de organização estatal inaugura um padrão histórico específico de relacionamento entre o sistema político e a sociedade civil. Esta relação é intermediada por um ordenamento jurídico que delimita os espaços político e societal. A ordem jurídica acaba por separar a esfera pública do setor privado, os atos de império dos atos de gestão, o interesse coletivo das aspirações individuais.

O Estado de Direito apresenta, como traços marcantes de sua conformação histórica, os princípios da soberania nacional, da independência dos poderes e da supremacia constitucional. O princípio da separação dos poderes, técnica destinada a conter o absolutismo, atribui a titularidade da função legislativa a parlamentos compostos pelos representantes da nação, restringe o campo de atuação do Poder Executivo aos limites estritos das normas legais e confere ao Poder Judiciário a competência para julgar e dirimir conflitos, neutralizando-o politicamente. O Estado submete-se ao primado da legalidade. A Lei é concebida como uma norma abstrata e genérica emanada do parlamento, segundo um processo previsto pela constituição. A Carta Magna, na acepção liberal, apresenta-se como uma ordenação sistemática da comunidade política, plasmada em regra num documento escrito, mediante o qual se estrutura o poder político e se asseguram os direitos fundamentais.

Conforme se depreende, a idéia moderna de que os homens encontravam-se aptos a delinear um projeto racional informa as definições clássicas de Lei e Constituição. As normas legais afiguram-se como instrumentos de uma razão planificante, capaz de engendrar a codificação do ordenamento jurídico e a regulamentação pormenorizada dos problemas sociais. A Constituição, produto de uma razão imanente e universal que organiza o mundo, cristaliza, em última análise, o pacto fundador de toda a sociedade civil.

O fenômeno da positivação é, pois, expressão palmar da modernidade jurídica, permitindo a compreensão do Direito como um conjunto de normas postas. Ocorrido, em larga medida, a partir século XIX, corresponde à legitimidade legal-burocrática preconizada por Max Weber, porquanto fundada em ritos e mecanismos de natureza formal. A positivação desponta como um no processo de filtragem, mediante procedimentos decisórios, das valorações e expectativas comportamentais presentes na sociedade, que são, assim, convertidas em normas dotadas de validez jurídica. A Lei, resultado de um conjunto de atos e procedimentos formais (iniciativa, discussão, quorum, deliberação) torna-se, destarte, a manifestação cristalina do Direito. Daí advém a identificação moderna entre Direito e Lei, restringindo o âmbito da experiência jurídica.

A análise global da conjuntura da época possibilita o entendimento do sentido desta idolatria à lei. O apego excessivo à norma legal refletia a postura conservadora de uma classe ascendente. A burguesia ao encampar o poder político, passou a utilizar a aparelhagem jurídica em conformidade com seus interesses. Se a utopia jusnaturalista impulsionou a revolução, a ideologia legalista legitimou a preservação do statu quo pelo argumento de que o conjunto de leis corporificava o justo pleno, cristalizando formalmente os princípios perenes do direito natural.

Além disto, as demandas do industrialismo, a celeridade das transformações econômicas exigiam um instrumental jurídico mais dinâmico e maleável. Em contraste com o processo de lenta formação das normas consuetudinárias, a Lei se afigurava como um instrumento expedito, pronto a disciplinar as novas situações de uma realidade cambiante. Ocorreu a institucionalização da mutabilidade do direito, isto é, a ordem jurídica tornou-se contingencial e manipulável conforme as circunstâncias.

O fastígio do princípio da separação de poderes, técnica de salvaguarda política e garantia das liberdades individuais, foi outro fator preponderante. Na concepção moderna, o julgador, ao interpretar a lei, deveria ater-se à literalidade do texto legal, para que não invadisse a seara do poder legislativo. O magistrado deveria restringe-se à vontade da lei - voluntas legislatoris. A aplicação do direito seria amparada no dogma da subsunção, pelo que o raciocínio jurídico consistiria na estruturação de um silogismo, envolvendo uma premissa maior (a diretiva normativa genérica) e uma premissa menor (o caso concreto).

Ressalte-se ainda que teorização jurídica da era moderna concebia o Direito como um ordenamento dessacralizado e racional. O sistema jurídico jurídico passou a ser entendido como um sistema fechado, axiomatizado e hierarquizado de normas. Desta concepção moderna defluiam as exigências de acabamento, plenitude, unicidade e coesão do direito. Nesta perspectiva sistêmica, são negadas as existências de lacunas e de antinomias normativas.


3. O colapso do ideário moderno


Um grande debate envolve o tema da modernidade, problematizando seus fundamentos, conquistas e perspectivas. Para muitos estudiosos, o programa moderno, enquanto realizava o seu desiderato de constituir sujeitos autônomos e sociedades racionalmente organizadas, também desenvolvia os fermentos e as forças de sua própria dissolução.

Neste diapasão, acentua Marshall Berman (1986. p.15):

A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia; nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une toda a espécie humana. Porém é uma unidade paradoxal, uma unidade da desunidade; ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, tudo que é sólido desmancha no ar.

O desvios e excessos do projeto da modernidade abrem margem para o aprofundamento de interpretações críticas, aptas a vislumbrar a feição repressiva do racionalismo ocidental. Deste modo, o pensamento contemporâneo sinaliza para uma transição paradigmática do programa moderno a uma cultura pós-moderna, cujos caracteres passam a ser delineados com o colapso da idade da razão.

Com efeito, no decorrer de seu transcurso histórico, o projeto da modernidade entrou em colapso. A vocação maximalista dos pilares regulatório e emancipatório, bem como dos princípios e lógicas internas inviabilizou o cumprimento da totalidade de suas promessas. Ocorreu, em determinados momentos, a expansão demasiada do espaço social ocupado pelo mercado, a maximização da racionalidade científica e, de um modo geral, o desenvolvimento exacerbado do vetor da regulação ante o vetor da emancipação. O pilar emancipatório assumiu a condição de roupagem cultural das forças de controle e heteronomia, comprometendo o equilíbrio tão almejado entre os pilares da modernos.

O programa da modernidade dissolveu-se num processo de racionalização da sociedade, que acabou por vincular a razão às exigências do poder político e à lógica específica do desenvolvimento capitalista. O conhecimento científico da realidade natural e social, entendido como meio de emancipação do ser humano, é submetido às injunções do poder vigente.

Denuncia-se o entrelaçamento das formações discursivas com as relações de poder. Com o aparecimento de uma razão tecnocrática, o saber se torna o serviçal e corolário lógico do poder. O discurso, mormente o científico, é convertido num eficiente instrumento de domínio. O discurso não é mais simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder de que todos querem se apoderar.

Neste sentido, adverte Michel Foucault (2002, p.8):

Eis a hipótese que gostaria de apresentar esta noite, para fixar o lugar – ou talvez o teatro muito provisório – do trabalho que faço: suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

Sendo assim, a razão de matriz iluminista se banalizou, restringindo seu horizonte e delimitando seu campo de indagação aos interesses do poder. Favoreceu o progresso técnico e o crescimento econômico, mas engendrou problemas sociais. A racionalidade moderna não mais atendeu às exigências originárias do homem (liberdade, justiça, verdade e felicidade), mas, do contrário, sucumbiu às exigências do mercado.

Salientando este aspecto, sustenta Max Horkheimer (1976, p.27-32):

Tendo cedido em sua autonomia, a razão tornou-se um instrumento. (...) A razão tornou-se algo inteiramente aproveitado no processo social. Seu valor operacional, seu papel no domínio dos homens e da natureza tornou-se o único critério para avaliá-la. (... ) É como se o próprio pensamento se tivesse reduzido ao nível do processo industrial, submetido a um programa estrito, em suma, se tivesse se tornado uma parte e uma parcela de produção.

Conquanto tenha desencadeado o progresso material da sociedade moderna, o racionalismo do ocidente acabou promovendo o cerceamento desintegrador da condição humana, a perda da liberdade individual, o esvaziamento ético e a formação de um sujeito egoísta, direcionado, precipuamente, ao ganho econômico. Os indivíduos foram convertidos a meros receptáculos de estratégias de produção, enquanto força de trabalho (alienação); de técnicas de consumo, enquanto consumidores (coisificação); e de mecanismos de dominação política, enquanto cidadãos da democracia de massas (massificação). A alienação, a coisificação e a massificação se tornaram patologias de uma modernidade em colapso.
Os pressupostos gnoseológicos da modernidade foram também solapados. Não mais prevalece mais a suposição de que o conhecimento é bom, objetivo e exato. O otimismo moderno no progresso científico é substituído pelo ceticismo no tocante à capacidade da ciência resolver os grandes problemas mundiais, mormente os ecológicos. Não se aceita a crença na plena objetividade do conhecimento. O mundo não é um simples dado que está “lá fora” à espera de ser descoberto e conhecido. A aproximação entre o sujeito e o objeto é uma tendência presente em todas modalidades de conhecimento científico. O trabalho do cientista, como o de qualquer ser humano, é condicionado pela história e pela cultura. A verdade brota de uma comunidade específica. Assim, o que quer que aceitemos como verdade, e até mesmo o modo como a vemos, depende da comunidade da qual participamos. Este relativismo se estende para além de nossas percepções da verdade e atinge sua essência: não existe verdade absoluta e universal. A verdade é sempre fruto de uma interpretação.

Eis o que afirma Edgar Morin (186, pp.197-198):

A ciência derrubou as verdades reveladas, as verdades absolutas. Do ponto de vista científico, essas verdades são ilusões. Pensou-se que a ciência substituía essas verdades falsas por verdades verdadeiras. Com efeito, ela fundamenta suas teorias sobre dados verificados, reverificados, sempre reverificáveis. Contudo, a história das ciências mostra-nos que as teorias científicas são mutáveis, isto é, sua verdade é temporária. A retomada dos dados desprezados, o aparecimento de novos dados graças aos progressos nas técnicas de observação /experimentação (...) destroem as teorias que se tornaram inadequadas e exigem outras, novas.

Decerto, a epistemologia contemporânea, através de uma grande plêiade de pensadores, vem fortalecendo a constatação de que as afirmações científicas são probabilísticas, porquanto se revelam submetidas a incertezas. Com a emergência da geometria não-euclidiana, da física quântica e da teoria da relatividade , instaurou-se a crise da ciência moderna, abalando os alicerces do positivismo científico: a certeza, o distanciamento sujeito-objeto e a neutralidade valorativa.

Neste compasso, Marilena Chauí (1984, 213-215), com base em Karl Popper, afirma que a ciência não é um sistema de enunciados certos ou bem estabelecidos, nem um sistema que avança constantemente em direção a um estado final. Deste modo, o velho ideal científico da episteme – do conhecimento absolutamente certo, demonstrável – mostrou ser um ídolo. A exigência da objetividade científica, segundo a autora, torna inevitável que todo enunciado científico permaneça provisório para sempre. Ele, com efeito, pode ser corroborado, mas toda corroboração é relativa a outros enunciados que, novamente, são provisórios. Assim, o valor de uma teoria não seria medido por sua verdade, mas pela possibilidade de ser falsa. A falseabilidade figuraria como o critério de avaliação das teorias científicas e garantiria a idéia de progresso científico, visto que a mesma teoria seria corrigida pelos fatos novos que a falsificam.

De outro lado, conforme assinala Stanley Grenz (1997, p.90), coube a Thomas Kuhn demonstrar que a ciência é um fenômeno dinâmico, vale dizer um construto cultural. A ocorrência das revoluções científicas revelaria que a ciência não deve ser vislumbrada como uma compilação de verdades universais objetivas. Para Thomas Kuhn, o progresso científico seria marcado por revoluções paradigmáticas. Com efeito, nos períodos de normalidade, o paradigma, visão de mundo expressa numa teoria, serviria para auxiliar os cientistas na resolução de seus problemas, sendo, posteriormente, substituído por outro paradigma, quando pendentes questões não devidamente respondidas pelo modelo científico anterior. Neste sentido, a obra de Kuhn leva ao reconhecimento de que os fundamentos do discurso científico e da própria verdade científica, são, em última análise, sociais. A ciência não se embasa numa observação neutra de dados, conforme propõe a teoria moderna. De acordo com o novo entendimento, o conhecimento científico não é uma compilação de verdades universais objetivas, mas um conjunto de investigações histórico-condicionadas, com amparo em comunidades especificas.

Outrossim, rompe-se com os limites da razão moderna para congregar valores e vivências pessoais. A racionalidade é inserida no processo comunicativo. A verdade resulta do diálogo entre atores sociais. Esta nova razão brota da intersubjetividade do cotidiano, operando numa tríplice dimensão. A racionalidade comunicativa viabiliza não só a relação cognitiva do sujeito com as coisas (esfera do ser), como também contempla os valores (esfera do dever ser), sentimentos e emoções (esfera das vivências pessoais).
Trata-se, pois, de uma razão dialógica, espontânea e processual: as proposições racionais são aquelas validadas num processo argumentativo, em que se aufere o consenso através do cotejo entre provas e argumentações. A racionalidade adere aos procedimentos pelos quais os protagonistas de uma relação comunicativa apresentam seus argumentos, com vistas à persuasão dos interlocutores.

4. Caracteres da cultura jurídica pós-moderna


As metanarrativas da modernidade iluminista, carregadas de um otimismo antropocêntrico, vislumbravam o advento de sociedades governadas pela racionalidade, encaminhadas para um estágio cada vez mais avançado de progresso técnico-científico e de desenvolvimento social.

Estas grandes visões modernas, contudo, esvaziaram-se e perderam, gradativamente, a credibilidade. Em seu transcurso histórico, o programa moderno não logrou concretizar seus ideais emancipatórios. Verificou-se que a proposta de racionalização da sociedade ocidental acabou por gerar profundos desequilíbrios entre os atores sociais, comprometendo a realização de uma subjetividade plenamente autônoma.

Nesta esteira, sublinha Paulo Rouanet (1993, pp.11-24):

No Brasil e no mundo, o projeto civilizatório da modernidade entrou em colapso. (...) Trata-se de uma rejeição dos próprios princípios, de uma recusa dos valores civilizatórios propostos pela modernidade. Como a civilização que tínhamos perdeu sua vigência e como nenhum outro projeto de civilização aponta no horizonte, estamos vivendo, literalmente, num vácuo civilizatório. Há um nome para isso: barbárie. (...) Agora não se tratava mais da impostura deliberada do clero, mas da falsa consciência induzida pela ação ideologizante da família, da escola e da imprensa, e mais radicalmente ainda, pela eficácia mistificadora da própria realidade – o fetichismo da mercadoria. (...) Quando a ciência se transforma em mito, quando surgem novos mitos e ressurgem mitos antiqüíssimos, quando a desrazão tem a seu dispor toda a parafernália da mídia moderna – quando tudo isso conspira contra a razão livre -, não é muito provável que o ideal kantiano da maioridade venha a prevalecer.

Com a crise da modernidade, muitos estudiosos referiram a emergência de um novo paradigma de compreensão do mundo – a pós-modernidade. A perspectiva pós-moderna passou a indicar a falência das promessas modernas de liberdade, de igualdade e de progresso acessíveis a todos. A desconfiança de todo discurso unificante é o marco característico do pensamento pós-moderno. A realidade social, dentro da perspectiva pós-moderna, não existe como totalidade, mas se revela fragmentada, multifacetada, fluida e plural.

O advento da pós-modernidade também se refletiu no direito do ocidente, descortinando profundas transformações nos modos de conhecer, organizar e realizar as instituições jurídicas.

Sobre as repercussões do paradigma pós-moderno no fenômeno jurídico, discorre Cláudia Marques (2002, p.155):

Com o advento da sociedade de consumo massificada e seu individualismo crescente nasce também uma crise sociológica, denominada por muitos de pós-moderna. Os chamados tempos pós-modernos são um desafio para o direito. Tempos de ceticismo quanto à capacidade da ciência do direito dar respostas adequadas e gerais para aos problemas que perturbam a sociedade atual e modificam-se com uma velocidade assustadora. Tempos de valorização dos serviços, do lazer, do abstrato e do transitório, que acabam por decretar a insuficiência do modelo contratual tradicional do direito civil, que acabam por forçar a evolução dos conceitos do direito, a propor uma nova jurisprudência dos valores, uma nova visão dos princípios do direito civil, agora muito mais influenciada pelo direito público e pelo respeito aos direitos fundamentais do cidadãos. Para alguns o pós-modernismo é uma crise de deconstrução, de fragmentação, de indeterminação à procura de uma nova racionalidade, de desregulamentação e de deslegitimação de nossas instituições, de desdogmatização do direito; para outros, é um fenômeno de pluralismo e relativismo cultural arrebatador a influenciar o direito.

Partindo da presente descrição, torna-se possível divisar os elementos fundamentais da cultura jurídica pós-moderna, podendo mencionar o delineamento de um direito plural, reflexivo, prospectivo, discursivo e relativo.

O fenômeno jurídico pós-moderno é cada vez mais plural. Este pluralismo se manifesta com a implosão dos sistemas normativos genéricos e o conseqüente surgimento dos microssistemas jurídicos, como o direito do consumidor. Este fenômeno de descodificação, verificável especialmente no direito privado tradicional, abre espaço para que uma multiplicidade de fontes legislativas regule os mesmos comportamentos sociais.
Por outro lado, o pluralismo se traduz no surgimento de interesses difusos, que transcendem às esferas dos indivíduos para alcançar, indistintamente, toda a comunidade jurídica. Estes interesses difusos são marcados pela indeterminação dos sujeitos, a indivisibilidade de seu objeto, a conflituosidade permanente e a mutação no tempo e espaço, diferindo da estrutura dos direitos subjetivos individuais, prevalentes dentro da modernidade jurídica.

O fenômeno jurídico pós-moderno assume, também, um caráter reflexivo. O direito moderno figurava como um centro normativo diretor, que, mediante o estabelecimento de pautas comportamentais, plasmava condutas e implementa um projeto global de organização e regulação social. Na pós-modernidade, entretanto, o direito passa a espelhar as demandas da coexistência societária. Sedimenta-se a consciência de que o direito deve ser entendido como um sistema aberto, suscetível aos influxos fáticos e axiológicos.

Corroborando esta perspectiva, sustenta Miguel Reale (1994,p.74):

Sendo a experiência jurídica uma das modalidades da experiência histórico-cultural, compreende-se que a implicação polar fato-valor se resolve, ao meu ver, num processo normativo de natureza integrante, cada norma ou conjunto de normas representando, em dado momento histórico e em função de dadas circunstâncias, a compreensão operacional compatível com a incidência de certos valores sobre os fatos múltiplos que condicionam a formação dos modelos jurídicos e sua aplicação.
Como se depreende, não se concebe mais o ordenamento jurídico como um sistema hermético, mas como uma ordem permeável aos valores e aos fatos da realidade cambiante. Daí decorre a compreensão do ordenamento jurídico como um fenômeno dinâmico e, pois, inserido na própria historicidade da vida humana.

O direito pós-moderno é, igualmente, prospectivo. A própria dinamicidade do fenômeno jurídico exige do legislador a elaboração de diplomas legais marcados pela textura aberta. A inserção de princípios jurídicos em cláusulas gerais e normas-objetivo - fórmulas propositadamente genéricas, indeterminadas e contingenciais - revela a preocupação de conferir a necessária flexibilidade aos modelos normativos, a fim de possa adaptá-lo aos novos tempos.

Apropriada é a lição de Gustavo Tepedino (2002, p.21):

Se o século XX foi identificado pelos historiadores como a Era dos Direitos, à ciência jurídica resta uma sensação incômoda, ao constatar sua incapacidade de conferir plena eficácia ao numeroso rol de direitos conquistados. Volta-se a ciência jurídica à busca de técnicas legislativas que possam assegurar uma maior efetividade aos critérios hermenêuticos. Nesta direção, parece indispensável, embora não suficiente, a definição de princípios de tutela da pessoa humana, como tem ocorrido de maneira superabundante nas diretivas européias e em textos constitucionais, bem como sua transposição na legislação infraconstitucional. O legislador percebe a necessidade de definir modelos de conduta (standards) delineados à luz de princípios que vinculem o intérprete, seja nas situações jurídicas típicas, seja nas situações não previstas pelo ordenamento. Daqui a necessidade de descrever nos textos normativos (e particularmente nos novos códigos) os cânones hermenêuticos e as prioridades axiológicas, os contornos da tutela da pessoa humana e os aspectos centrais da identidade cultural que se pretende proteger, ao lado de normas que permitem, do ponto de vista de sua estrutura e função, a necessária comunhão entre o preceito normativo e as circunstâncias do caso concreto.

O fenômeno jurídico pós-moderno passa a valorizar a dimensão discursivo-comunicativa. Entende-se que o direito é uma manifestação da linguagem humana. Logo, o conhecimento e a realização do ordenamento jurídico exigem o uso apropriado dos instrumentos lingüísticos da semiótica ou semiologia. Torna-se, cada vez mais plausível, o entendimento de que os juristas devem procurar as significações do direito no contexto de interações comunicativas. Deste modo, a linguagem se afigura como a condição de exterioridade dos sentidos incrustados na experiência jurídica.

Enfatizando a relevância da linguagem jurídica, asseveram Edmundo Arruda e Marcus Fabiano (2002, pp.326-327):

Quando qualificamos como complexa a atividade interpretativa apenas salientamos, na mobilização dessas múltiplas faculdades psíquicas, o acoplamento de estados interiores ao mundo externo pela via do principal instrumento de mediação: a linguagem. (...) A linguagem, portanto, funda e constitui o mundo. Por isso mesmo, a interpretação não se reduz a uma atividade passiva. Não somos o mero receptáculo em estados interiores das impressões do mundo exterior. O mundo é feito por nós quando nos apropriamos dele interpretativamente. Nessa mediação lingüística da compreensão, o mundo é por nós transformado, constantemente desfeito e refeito. Mas nem todas as linguagens são iguais. Existem certas linguagens dotadas da capacidade de mobilizar grandes poderes sociais, como é o caso do direito. Tais linguagens-poderes imprimem novas condições de possibilidade à vivência do e no mundo. Quem por ofício manipula essas linguagens na sua lida quotidiana recebe então uma responsabilidade adicional: a de fazer não só o seu próprio mundo, mas também o daqueles onde muitos outros podem viver.

Outrossim, a teoria e a prática do direito passam a enfatizar o estabelecimento das condições de decidibilidade dos conflitos, potencializando o uso de técnicas persuasivas. O raciocínio jurídico, no âmbito de um processo comunicativo, não se resume a uma mera operação lógico-formal, mas concatena fórmulas axiológicas de consenso, como os princípios. O processo argumentativo não se respalda nas evidências, mas, isto sim, em juízos de valor. A retórica assume, nesse contexto, papel primordial, enquanto processo argumentativo que, ao articular discursivamente valores, convence a comunidade de que uma interpretação jurídica deve prevalecer.

Ademais, o direito pós-moderno é relativo. Isto porque não se pode conceber verdades jurídicas absolutas, mas sempre dados relativos e provisórios. Na pós-modernidade jurídica, marcada pela constelação de valores e pelos fundamentos lingüísticos, qualquer assertiva desponta como uma forma de interpretação. O relativismo pós-moderno oportuniza a consolidação de um saber hermenêutico.

Esta virada em direção à racionalidade hermenêutica é referida por Andrei Marmor (2000, p.9):

A interpretação tornou-se um dos principais paradigmas intelectuais dos estudos jurídicos nos últimos quinze anos. Assim como o interesse pelas normas na década de 1960 e pelos princípios jurídicos na de 1970, boa parte da teorização da última década foi edificada em torno do conceito de interpretação. Em um aspecto importante, porém, a interpretação é um paradigma mais ambicioso: não se trata apenas de um tema no qual os filósofos do Direito estão interessados mas, segundo alguns filósofos muito influentes, a interpretação é também um método geral, uma metateoria da teoria do direito.

Sob o influxo do pensamento pós-positivista, cristaliza-se um novo modelo interpretativo que impõe uma valorização da linguagem e dos princípios jurídicos. Entende-se que o ato de interpretar e aplicar o direito envolve o recurso permanente a instâncias intersubjetivas de valoração. O raciocínio jurídico congrega valores, ainda que fluidos e mutadiços, porquanto o direito se revela como um objeto cultural, cujo sentido é socialmente compartilhado. A hermenêutica jurídica dirige-se à busca de uma dinâmica voluntas legis, verificando a finalidade da norma em face do convívio em sociedade.

Deste modo, o relativismo potencializa uma hermenêutica jurídica construtiva, voltada para o implemento da justiça social. Este novo paradigma hermenêutico torna-se capaz de promover a tutela e inclusão de grupos hipossuficientes, garantindo a efetividade dos direitos consagrados no direito positivo, mormente nos microssistemas jurídicos de índole protetiva.


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1 comentários:

Rogério Araújo disse...

Uma pessoa com o dom da palavra que consegue transmitir de forma coesa e objetiva sobre todos os aspectos do Direito, gosto muito das aulas dele no LFG.

As pessoas precisam de informação clara e sem juridiquês, sem que o discurso se sobreponha ao conteúdo e este jovem mostra isso com uma habilidade ímpar.